Como todos sabem, recebo diariamente dezenas de apelos de animais abandonados, de canis municipais, da rua, de todos os lados. Conforme vou podendo, faço apelos para eles, divulgo-os, por vezes consigo arranjar donos, e assim de vez em quando lá se salva mais um.
Mas isto não acaba enquanto não houver uma estrutura base que proteja o animal abandonado. Enquanto não houver coimas sérias para quem abandona, enquanto não se tomarem medidas que evitem que nasçam mais cães, e mais cães.....enquanto as pessoas não se mentalizarem de que os animais quando se adoptam, são para fazer parte da família, e que com eles irão um dia nem que seja para debaixo da ponte.
Recebo os apelos, mas para além dos cães com quem convivo nas campanhas de adopção, a maior parte das vezes não vivo a realidade in loco. Sou os dedos por detrás do computador, sentadinha na minha secretária, com os meus bichos aos meus pés, felizes e mimados. Penso neles, os abandonados, sofro por eles por pouco poder fazer, por vezes não durmo a pensar neles, mas nem sempre estou lá, ao vivo e a cores, e quando me perguntam eu digo sempre que trabalho nisto em backoffice.
Eu sei que faço pouco, mas o pouco que faço é com muita dedicação. Gostava que a minha vida fosse isto, os animais, e que fosse esta vida que me permitisse ganhar o meu pão, mas não é....quem sabe um dia... quando me reformar eu possa finalmente dedicar-me aos animais a tempo inteiro, e aí sim, vivê-la com a mesma intensidade que algumas pessoas a vivem. Essas pessoas que eu admiro MUITO.
Mas ontem, como estou de férias, fui dar uma voltinha com uma amiga, que vive esta realidade na sua plenitude e que diariamente se move em prol dos animais, tentando minimizar o sofrimento de muitos animais abandonados pelos donos.
Se eu pensava que já tinha visto muita coisa na minha vida, hoje cheguei à conclusão de que ainda não vi nada.
Fomos até à Pontinha, a um bairro de casas a caminho de ser demolidas, algumas já são só paredes, outras ainda têm coisas lá dentro, se bem que tudo numa imundicie que não se pode.
Numa casa que já nem vidros tem porque os roubaram, encontram-se tres cães, nos escombros de um quintal sujissimo, sem acessos fáceis.
Para se chegar aos cães tem de se entrar em casa, atravessar um quarto cheio de porcaria, roupas, objectos, moscas, bichos vários, muito lixo e afins. Saltar um janela. Aterrar num ermo feito de terra batida, com grandes buracos onde os cães se escondem na terra. Atravessa-se esse sitio e vai dar a um sitio que em tempos se deve ter chamado quintal. Mais lixo. Como não se viam os cães a única possibilidade seria passar num espaço estreito entre duas paredes desse quintal que vão dar ao resto do espaço, mas que estavam com a passagem tapada por um buraco fundo, com umas tábuas em cima tipo cai não cai.... e o mais certo era eu cair, visto que ia de sandalitas. Só atravessando esse caminho se vai dar a um outro espaço do dito quintalito, onde se encontram os cães. Tres cães que ali vivem, nunca saiem dali, ali procriam, sem água nem comida, sem nada. Cães quase selvagens. Não fosse esta minha amiga ir lá todos os dias deixar comida perto da janela (ela não consegue passar no corredor estreito), os cães há muito que já teriam morrido. Há uns tempos conseguiu apanhar cinco bebés, que felizmente já foram dados.
Estes animais não conseguem sair da casa, vivem ali entre as paredes e aquele lixo todo. Foram lá deixados pelos donos que foram para uma casa nova. Quando a casa for totalmente demolida... que será destes animais?
Outra casa. Um pátio. Um cão. O pátio é muito pequenino, está cheio de tralha.
Um cãozinho vive ali há imenso tempo, no meio de toda essa tralha. A única companhia são as ratazanas, que estão sempre à espreita para lhe ir roubar a comida.
O cão foi ali deixado, mais uma vez porque os donos foram para uma casa nova. Ficou ali, sozinho, sem água e sem comida, dia e noite, num espaço minímo, à chuva, ao frio ou ao calor, tanto faz. Para se abrigar, só se for mesmo no meio da tralha, junto com as amigas ratazanas, as carraças, as pulgas e outra bicharada. É alimentado diariamente porque a minha amiga todos os dias vai lá mudar-lhe a água, deixar-lhe arroz com frango e ração. Só nessa altura o cãozinho recebe uma festa, um miminho, um carinho. Nesses dez minutos diários, apenas. Fiquei a olhar para ele muito tempo, através das grades do portão. O cão observava-me com ar desconfiado, ele não está habituado a ver ninguém, a não ser a minha amiga.
Outro cão. Lindo e grande, com ar triste e deprimido. Vive na rua, em frente às casas. Teve uma dona, sim. Que também se foi embora, para uma casa de 5 assoalhadas, mas deixou o cão.
Este dorme na rua, anda por ali, também espera diariamente pela minha amiga, que lhe traz a papinha diária, lhe põe as pipetas pras pulgas e lhe faz uma festa. Quando chove, recolhe-se numa ruina de uma das casas, que em tempos foi um quarto de uma criança qualquer.
E mais outro. Chamam-lhe abelhinha porque guarda as abelhas. Vive na rua, os donos morreram. Dorme à beira da estrada, ou num antigo poiso de galinhas. Todos os dias espera à beira da estrada, por a mão amiga que lhe traz a refeição do dia.
Depois de eu ter presenciado isto tudo, que foi apenas uma parte do dia desta minha amiga (pois já tinha andado por outros poisos a alimentar outros animais) eu fiquei chocada.
Fiquei sem palavras, senti-me impotente, senti-me triste. Dou voltas à minha cabeça do que poderei fazer para salvar estes animais.
Quando as casas forem abaixo, para onde vão eles?
Depois de ver tanta miséria só posso concluir que os "animais" não são eles, os "animais" somos "nós", que os abandonamos.